quinta-feira, 31 de agosto de 2017

E se nada der certo...

Se nada der certo,
eu vou pegar a estrada
largar os sapatos
e ir morar na praia
Tomarei banho de mar
e meditarei ao pôr do sol
Se dinheiro me faltar,
posso criar receitas fantásticas
com um tempero incrível
que aprendi com minha mãe e avó
Posso tocar violão e cantar,
como meu pai me ensinou.
levarei pra sempre seu violão comigo
e a noite será mais clara
com as fogueiras pequeninas
na areia
Não perdi a sensibilidade,
posso continuar pintando.
Água não irá faltar
para as aquarelas
E se nada disso me for possível
e a minha máquina fotográfica não funcionar
posso moldar com argila,
ou com a areia molhada,
os castelos e os bichos
que as nuvens formam no céu
Não, não me ensinaram ainda
a arte
da escultura
mas eu posso aprender
a cada desmanchar
pela ondas do mar
E terei meus filhos ao meu lado
e ensinarei outros meninos
a arte de contar histórias
pois para isso me formei
e ninguém pode tirar de mim
aquilo que aprendi
E ninguém pode tirar de mim
os amigos que ganhei
na vida que me foi dada
nem o amor que conquistei
nem a família que em que fui gerada
E se tudo isso ainda me faltar
eu escreverei poesias
e bordarei nas folhas das árvores
com as linhas das pipas perdidas
da minha infância
pela viagem com o vento.
Alice Xavier

metamorfose ambulante

O meu padrão é não seguir padrão algum
Uso as cores que a minha alma gosta
E a minha alma é nova todo dia
Metamorfose ambulante
Das opiniões contrárias
Às minhas próprias
Não uso pijama pra dormir
Nem se parecem comigo as camisolas
Me acostumei sem batom nos lábios
Com o meu cabelo da cor que tem que ser
Sou de pensar muito
Eu no meu canto.
E de chorar tanto
Por causas inexplicáveis ainda
Sou desatenta por natureza
Caio com facilidade
Esse corpo grande
Com esses braços moles
Vejo diferente
Eu sei
Vejo coisas onde não tem
Belezas
Detalhes
Cores
Ouço palavras que ninguém ouve
Parece loucura
Mas sim, elas existem
E eu as escrevo
Gosto dos desafios
Não me diga que não sou capaz
Porque eu vou provar para você
O oposto do que você disse
Sou de peixes
Com ascendente em touro
Não pisa no meu calo
Porque não me calo tão fácil
Difícil eu não gostar de alguém
Mas basta uma só vez
Pra eu queimar
As cartas
E as juras de amor
Algumas músicas me irritam
Profundamente
Sou do rock
Do samba raiz
Da música popular brasileira
Sou de Manoel de Barros,
O seu menino carregando água na peneira
Prezo mais os passarinhos
E o abstrato do mundo
Eu juro que eu já quis
Não ser tão sensível
Mas eu me alimento dessa sensibilidade
E não me venha dizer
Que eu tenho que ser assim
Ou assim
O meu padrão é não seguir padrão algum
Essa história de menina que não pode assobiar
Não entra na minha história.
Alice Xavier

Acho que me perdi

Acho que me perdi
Achei que era fácil me reencontrar
Mas em cada volta que eu dou
Não sei mais o meu lugar.
Levanto os olhos para o sol
E sinto pesar as pálpebras
As lágrimas envelhecem a pele
E os sonhos, o coração
Levanto de madrugada
Há uma força que me conduz
Mas não há remos na minha mão
E o rio é ligeiro
Subo no barco e me deixo?
Ou nado nas profundezas?
Agarro-me nos galhos mais firmes
Ou deito-me nas águas
confiando meu corpo ao leito?
Acho que me perdi
E não sei o caminho de volta
Meus pés estao feridos
Meus ombros não se sustentam
Meu corpo não é meu corpo
Falta um pedaço aqui dentro
Nem todo sorriso é alegria
Nem toda dor passa com o tempo
Eu quero encontrar meu caminho
Meu sossego, meu alento
Prendo os meus cabelos
Seguro firme o meu peito
Encaro as pedras
Planto flores por onde piso
Uma hora eu encontro o espelho
Com a velha imagem
de meu sorriso.
Alice Xavier

Pra não dizer que não falei de flores

Fecha a boca
Fecha as pernas
Não mostra as pernas
Pára de correr
Senta direito
Bota a roupa
amarra esse cabelo
passa um batom
olha a postura
mulher nao diz isso
nem aquilo
se não sabe pregar um botão, vai casar como?
serve seu marido
você tem que ceder
silêncio
finge que não tá vendo
fala baixo
ele chega cansado
tem que ter janta em casa
tem que dormir de camisola
tem que ficar calada
tem que acordar cedo
tem que preparar o café
Moça não faz isso
você já é uma mocinha
mulher custa caro
custa caro ser mulher
Alice Xavier

o pouco sono de mãe

Essa coisa de ser mãe
Não é fácil não
De repente lhe é dada a missão
E ela tem que ser!
Mas aí vem um brinde
Um alento
O comprimido da força
(Porque ela não pode sucumbir),
O amor.
Minha tia já dizia que
"Se a gente não amasse tanto
Matava tudo,
Os filhos”
Essa coisa de passar a noite em claro
Não é só quando o filho é bebê
Nem só quando ele já vai pra balada
Mãe perde o sono
Quando não sabe o que se passa naquela cabeça de minhoca
Nem naquele coração tão choroso por tudo
Perde o sono
Quando o filho cai
Quando sente dor
Quando precisou ser internado às pressas
Mãe perde o sono
Quando o coleguinha provoca
Quando o outro xinga
Quando a menina pisa
E a professora não acredita
Perde o sono quando não sabe
Se o filho falou a verdade
Ou de onde ele trouxe aquele
Brinquedo diferente
Mãe deixa de dormir
Quando o filho tem que se apresentar no exército
E tem medo de tudo
Tem medo quando pede pra sair
Ou quando diz que vai descer na montanha russa
E fica imaginando coisas
E só as piores coisas
Perde o sono, falta-lhe o ar,
A boca seca, o corpo deita na cama
E ela chora
Porque por inúmeras vezes
Não sabe o que fazer
Sente toda a culpa do mundo
Porque acredita que fez tudo errado
E guarda pra si toda a dor
E engole o choro
E diz pro filho que
"Tá tudo bem"
Depois chama ele no canto
E tem aquela conversa
Ou o põe naquele cantinho
Do pensamento
Que ajuda também
Ou canta aquele canto antigo
Que ela cantava na missa
quando era criança
E a mãe canta
E acredita que sua voz é mágica
E que vai salvar o filho
De todos os perigos do mundo
"Mãe é bicho besta",
Diz a minha avó
E eu não duvido
Mãe chora por tudo
Até na apresentação da escola
No dia dos pais
Mas o mais difícil
Na tarefa da maternidade
São os julgamentos
Como ferem!
“Está tampando o sol com a peneira”
cochicha aquela pessoa amada
que acha que a mãe não está ouvindo
“Protege demais”
“Entope de remédio”
“Implica com a professora”
“Embirra com o namorado”
“Deu castigo demais”
“Deu castigo de menos”
“Devia dar uma surra”
“O menino ainda vai bater nela”
“Tá criando um delinquente”
“não sabe criar”
“não sabe educar”
“não sabe ser mãe”
Rasga profundamente a alma o julgamento
E a mãe se deleita sozinha e sente...
Sente a solidão materna
E profunda
Que não tem remédio
E nem amor que alcança
Acolhe os filhos no peito
Põe pra dormir e se deita
Em silêncio.
Ser mãe dói
às vezes
feliz da mãe que pode escrever poesia.
Alice Xavier

uma coisa

Amando aquele amor da vida inteira
desenhou na areia o poeta
quis que a onda do mar levasse as letras
mas há uma coisa no mundo
uma coisa...
uma coisa misteriosa
que não deixa morrer o que veio
pra eternidade.
Alice Xavier

Ipês de minha terra



Mês de agosto
Na minha terra
Há flores
No meu cabelo
Há flores
Na cesta do piquenique
Ou da bicicleta
No amanhecer
No pôr do sol
Na tarde quente e seca
No céu tão limpo
No vento
Há flores até nos pensamentos

Alice Xavier

Às margens

estou sensível,
não me abraçe.
ou abraçe se puder
mas não se espante
se eu chorar
venho das águas distantes
cansada
seguindo o leito do rio
me agarrei em galhos
ora frágeis
ora fortes
desci as cachoeiras mais altas
fui amparada por pedras
e folhas
perdi-me ao fundo
voltei clamando por fôlego
repousei na calmaria comprida
e fui jogada na areia
às margens
estou sensível
não me toque
ou toque se puder
minhas mãos são leves
e não há feridas aparentes
em meu corpo
o que dói ninguém vê
suspira comigo
e me olha
simplesmente
dá-me o teu olhar mais doce
cobre-me com teu agasalho
ofereça-me um pouco d'água
pra eu beber
Amanhã sigo novamente
e mais forte,
quem sabe
os corações amigos tem isso
de nos reerguer.

Alice Xavier